Segurança alimentar e segurança do alimento: desafios e perspectivas a partir da COVID-19
Larissa Milkiewicz*
Mariana Gmach Philippi*
O mundo vivencia os reflexos sociais, econômicos e ambientais de uma pandemia nunca vivenciada pela humanidade – COVID-19. Deste fato, emergem, além da crescente preocupação com a manutenção e qualidade de vida, reflexos sociais e econômicos inerentes à quarentena, desencadeados, sobretudo, pela imperativa reclusão social e fechamento de comércios e empresas ao redor do mundo.
Neste cenário está, inclusive, a preocupação com a segurança alimentar, tanto é que, em 1º de abril do corrente ano, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) expressou sua preocupação com a possível falta alimento, tendo em vista que a incerteza sobre a disponibilidade de alimentos pode desencadear uma onda de restrições à exportação, gerando escassez no mercado mundial1.
Neste caminho, vem à tona a questão da segurança do alimento. Diferente da segurança alimentar, que se refere à necessidade de se impedir a fome por carência de alimento, a segurança do alimento consiste na preocupação em assegurar qualidade e segurança aos alimentos que são levados às mesas dos consumidores.
O ordenamento jurídico brasileiro prevê tanto a segurança alimentar quando a segurança dos alimentos. Na Constituição Federal de 1988, após a Emenda Constitucional nº 64 de 2010, está expresso, como direito social, o direito humano à alimentação, contemplando o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 19482.
Além disso, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) busca garantir o atendimento às necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia nas relações de consumo (art. 4.º, caput, CDC).3
Para tanto, os princípios do CDC (art. 4º) devem ser atendidos, com destaque para o princípio da vulnerabilidade do consumidor, da harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e da compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico. Tais princípios fundamentam-se na boa-fé e no incentivo à criação de meios eficientes de controle de qualidade e segurança na oferta de produtos e serviços.
Com o advento da pandemia de COVID-19 em todo o mundo, tanto a segurança alimentar quanto a segurança dos alimentos emergem como uma preocupação salutar na agenda global de enfrentamento à pandemia. A necessidade de se garantir a qualidade nos alimentos que chegam até a população ganha especial relevo, desde a etapa de plantio até a manipulação para consumo. Impende, portanto, averiguar em que medida o Brasil pode contribuir para garantir a produção de alimentos em quantidade e qualidade satisfatórias.
De acordo com o representante da FAO4 no Brasil, Alan Bojanic5, “em 2050 a população será de 9,8 bilhões, […] e o crescimento maior será nos países em desenvolvimento”. Bojanic prossegue, afirmando que, “Para alimentar essa população maior, urbana e rica, a produção de alimentos deverá aumentar em 70%”. Segundo o representante da FAO, até 2024 o Brasil se tornará o principal fornecedor para responder ao aumento da demanda global de importações de commodities6.
É importante notar que, em termos de consumo, os consumidores vêm se mostrando cada vez mais exigentes quanto aos produtos que chegam às suas mesas, o que reflete diretamente a preocupação com a rastreabilidade e segurança dos alimentos.
Com a necessidade de aumento nos níveis de produção – sem deixar de lado a crescente preocupação com a segurança do alimento -, interessa destacar os meios dos quais o Brasil dispõe para manter, ampliar e assegurar a qualidade e segurança de sua produção agropecuária, em tempos de coronavírus e nos momentos vindouros, pós-crise.
A agricultura brasileira passa por profundas transformações econômicas, culturais, sociais, tecnológicas, ambientais e mercadológicas, perpassando pela agricultura de precisão nos maquinários agrícolas de plantação, controle meteorológico e registro da aplicação de agrotóxico na produção. Em um futuro cada vez mais próximo, o atuar do agricultor será guiado por ferramentas de gestão advindas da sofisticada tecnologia disponível no mercado7.
A este respeito, Celso Moretti8, presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) destaca a ocorrência de uma verdadeira revolução na agroindústria brasileira. Trata-se da agricultura digital, manifesta, por exemplo, com a chegada de veículos autônomos, drones e sensores, e que se vincula diretamente à sustentabilidade e aos sistemas integrados de produção.
Mas isso não implica em dizer que a agricultura tecnológica beneficia apenas agricultor. Ao contrário, traz benefícios a toda a cadeia de consumo. O emprego das ferramentas tecnológicas na agricultura viabiliza a tão almejada rastreabilidade do alimento, ou seja, o consumidor poderá ter conhecimento do local onde aquilo que ele ingere foi produzido, se a propriedade respeita as reservas legais ambientais, quais os agrotóxicos aplicados e sua respectiva dosagem, modo de armazenamento do alimento, entre outros fatores. Essas novas possibilidades agregam valor e segurança aos alimentos produzidos.
A atual crise desencadeada pelo coronavírus talvez tenha, nessa perspectiva, um desdobramento importante: colocar em evidência a importância de o agronegócio se atentar para a relevância da inovação no campo e para a mudança na percepção dos consumidores quanto aos produtos que consomem.
A pandemia de COVID-19 que assola o mundo com certeza ainda implicará em grandes desafios, não apenas à saúde pública, mas a diversos setores sociais e econômicos. Para o agronegócio, entretanto, aguardar o fim da tormenta não é uma opção. Mais do que nunca, ele é chamado a cumprir seu papel e, com segurança e sustentabilidade, garantir o abastecimento da população. Resta aos agricultores vislumbrar as oportunidades que emergem com a crise.
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1 ONU. Disponível em:https://nacoesunidas.org/paises-devem-atenuar-os-efeitos-da-covid-19-no-comercio-e-nos-mercados-de-alimentos-alerta-fao/. Acesso em: 02 abr. 2020.
2 ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Disponível em:https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf. Acesso em: 02 abr. 2020.
3 BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990.https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm. Acesso em: 02 abr. 2020.
4 Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.
5 FAO no Brasil. Representante da FAO Brasil apresenta cenário da demanda por alimentos. Disponível em:https://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/pt/c/901168/. Acesso em: 02 abr. 2020.
6 FAO no Brasil. Representante da FAO Brasil apresenta cenário da demanda por alimentos. Disponível em:https://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/pt/c/901168/. Acesso em: 02 abr. 2020.
7 EMBRAPA. Futuro: o papel da ciência, tecnologia e inovação.https://www.embrapa.br/visao/o-papel-da-ciencia-tecnologia-e-inovacao. Acesso em: 02 abr. 2020.
8 ESTADÃO. De olho na agricultura digital, Embrapa aproxima startups de investidores. 06/03/2020. Disponível em:https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,de-olho-na-agricultura-digital-embrapa-aproxima-startups-de-investidores,70003222417. Acesso em 02 abr. 2020.
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* Saiba mais sobre os Autores:
Larissa Milkiewicz é Doutoranda em Direito Econômico e Desenvolvimento pela PUCPR. Mestre em Direito. Fundadora e Advogada em Milkiewicz Advocacia.
Mariana Gmach Philippi é Doutoranda em Direito Socioambiental e Sustentabilidade pela PUCPR e Mestre em Direito.
- Artigo publicado no Portal Migalhas, em 29 de abril de 2020.
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